É a terceira madrugada de angústia afogada no uísque em que Rick Blaine tenta esquecer a aventura amorosa em uma Paris sitiada. O bom amigo Sam mais uma vez o acompanha e tenta impedir uma hemoptise de rancor e desesperança.
Algumas horas antes, o inescrupuloso Ugarte tentara atrair a confiança do proprietário do Rick’s Café Americain, a quem queria entregar vistos de saídas roubados de soldados alemães. Foi Sam quem marcou o encontro para a tarde seguinte.
O melhor lugar para Rick receber os documentos sem dar na vista do major alemão Strasser e do capitão francês Renault é o Stade Larbi Zaouli, onde um grande amigo do pianista maravilhava nativos e visitantes com seu futebol digno de cinema.
Nas arquibancadas lotadas do singelo estádio de Casablanca, construído em 1930 e que naqueles anos de Segunda Guerra viu o gênio de Ben Barek voltar a atuar em seu gramado, transcorreria a cena que jamais compôs o clássico filme “Casablanca”.
O roteiro de“Casablanca” ganhou há alguns anos um título que muitos críticos e cinéfilos dão ao próprio filme num todo: de melhor da história em todos os tempos. A obra foi dirigida pelo húngaro Mihaly Kertesz, ocidentalmente famoso como Michael Curtiz.
Mas como teria sido maravilhoso ter inserido um pouco do jogador marroquino Ben Barek na obra imortal; o mais incrível craque que o futebol mundial havia produzido até aqueles anos, considerado décadas depois pela FIFA o melhor do seu tempo.

Os dribles espetaculares e dois gols marcados contra o Raja Casablanca, time bem estabelecido no lugar, o levou ao rival deste, o US Marocaine, onde Barek exibiria toda sua técnica e talento por alguns anos da festejada carreira na Europa.
Entre 1934 e 1938, a arte boleira do jogador impôs a hegemonia do time nas praças esportivas de todo o Marrocos. Seus feitos considerados “lances milagrosos” espalharam-se por todo o norte da África e atravessaram o estreito de Gibraltar.
O Marrocos era ainda um protetorado da França, onde a bucólica Casablanca se tornaria destino turístico e ponto de fuga depois do avanço alemão. Em 1938, uma proposta irrecusável do Olympique de Marselha levou Ben Barek para os estádios franceses.
Suas jogadas fenomenais logo lhes deram o apelido de “Pérola Negra” e levaram a sociedade francesa a exigi-lo como jogador do selecionado nacional. Entre 1938 e 1954, vestiu a camisa dos “Le Bleus”, numa longevidade jamais repetida.
Com a explosão da 2ª Guerra, Barek retornou ao Marrocos e ficou mais quatro anos no US Marocaine. E enquanto o inferno de fogo e morte varria a Europa, um sétimo céu (expressão muçulmana para felicidade extrema) se abria em gols e magia na pequena Casablanca.
Derrotado o Terceiro Reich e com Paris resgatada pelas forças aliadas, outro time francês foi pescar a pérola marroquina. Nem havia terminado 1945 e o Stade Français o contratou e novamente a alegria voltou aos campos de futebol do país.
“Vendam o Arco do Triunfo e a Torre Eiffel, mas não vendam Ben Barek!”, estampou um jornal parisiense quando estourou a bomba de uma negociação com o Atlético de Madrid, que sonhava conquistar títulos a partir dos gols e jogadas do africano.
Os monumentos históricos ficaram em Paris e o patrimônio lúdico dos franceses partiu para os campos ibéricos. Durante seis anos ele encantou platéias e espantou a imprensa espanhola, mas voltando sempre aos franceses nas convocações da seleção azul.

Mas a melhor definição sobre a grandeza do craque veio nos primeiros anos em que o mundo descobriu um monarca da bola. Ao ser chamado de “rei” numa solenidade com franceses e africanos, Pelé devolveu: “Se eu sou rei, então Barek é o deus do futebol”.
No dia em que o cinema ousar um remake de Casablanca, quem sabe a magia da “Pérola Negra” apareça radiante devolvendo o amor a Rick Blaine e Ilsa Lund. E após um gol de Barek, o piano de Sam espalhe por sobre as torcidas as notas de “As Time Goes By”.
NOTA: texto de Alex Medeiros, em sua coluna Portfolio, para o Jornal de Hoje (Natal/RN.) de 17/12.
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