quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

QUINTAS PARADISO

Todos nós, os que amamos o cinema e vivemos durante a infância a experiência de abrigar nossas fantasias e aventuras dentro de uma pequena sala de projeção, já fomos “Totó” um dia e tivemos uma espécie de “Alfredo” a nos alimentar sonhos. Refiro-me aos personagens imortais do filme Cinema Paradiso, obra de Giuseppe Tornatore lançada em 1988 e que se repete nas nossas sessões particulares e domésticas. Éramos muitos “Totós” no Cine São José, das Quintas, onde Erivan era o “Alfredo”. Os meninos naqueles anos 60/70 não tinham com o proprietário do cinema a mesma relação pessoal existente no famoso filme, mas havia a interação a partir dos elementos que nos unia ao humilde exibidor, o micro-empresário da sétima arte no bairro.
Sentíamos a presença de Erivan horas antes das sessões contínuas que encerravam com quinze ou vinte minutos de seriados em capítulos. O esquema era o marketing da casa a nos atrair no fim de semana seguinte para o desfecho que se arrastava por meses. Quase não víamos a figura do dono do “purguinha”, apelido imposto pela picardia de antanho e dito às vezes em tom até carinhoso. Nós amávamos frequentar o minúsculo Cine São José, sua calçada na lateral do mercado público como um bazar a céu aberto. Sempre que assisto pela TV as imagens da “San Diego Comic-Con”, a gigantesca feira internacional de quadrinhos na cidade norte-americana, me vem o pensamento carregado de saudade de que “não troco por aquilo tudo a velha calçada do São José”.
Nas matinês de sábado ou domingo, chegávamos em bandos com até três horas antecedendo a primeira sessão. No pequeno espaço entre as duas portas do cinema, um mercado persa de revistinhas de super-heróis, bang-bang, terror e outras aventuras. Indentificávamos a léguas de distância o timbre da voz de Erivan, um antecessor do Lombardi do programa Silvio Santos a animar platéias com seus avisos sonoros. Na esquina do prédio do mercado, autofalantes reforçavam o negócio do cinema.
“Não percam logo mais, Uma Pistola Para Ringo e Tarzan o Magnífico, seguido de mais um episódio do empolgante seriado Flash Gordon no Planeta Mongo”, anunciava as bocas de ferro da Amplificadora São José com pompa de segunda empresa. Enquanto rolavam as negociações de vendas, compras e troca-trocas de revistas na estreita calçada, a improvisada agência de propaganda de Erivan rodava o ano inteiro os LPs da banda “The Pops” intercalados com reclames do tipo “plantão de farmácias”. Homem simples, sem canudos escolares ou qualquer conhecimento técnico que não fosse projetar e rebobinar as fitas do seu pequenino império, Erivan aplicou táticas pavlovianas de forma natural sem jamais ter ouvido falar do fisiologista russo.
Ficávamos horas ouvindo o som instrumental da banda de Pippo, J. Cezar e dos irmãos Silvio e Henrique Parada, absortos no escambo das revistinhas de Batman, Tarzan, Superman, Recruta Zero, Fantasma, Gunsmoke, Zorro e tantas outras. De repente, uma marcha marcial invadia nossos ouvidos, mexia com nossos circuitos elétricos e lançava uma espécie de comando sensorial como os apitos e gritos fazem com os cães domesticados. Era a mesma música que pregava o alistamento militar. O efeito daquela marchinha soando na competente amplificadora de Erivan era imediato, fazia encerrar em minutos a feira de HQ e nos fazia correr para a bilheteria onde a mulher dele acabara de abrir oficialmente a venda de ingressos. Meninos e homens disciplinados pela ordem musical do dono do cinema e sua técnica de condicionamento exemplar. Penso hoje de como seria apropriado o esquema de Erivan nos tumultos das grandes casas exibidoras trancadas em shoppings. Semana passada, no escurinho luxuoso de um cinema, derramei uma lágrima pelo meu Alfredo do cineminha das Quintas. Soube com atraso do seu falecimento. A todos aqueles que o conheceram, que esta crônica seja o autofalante da triste notícia.


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NOTA: Este maravilhoso texto, resgatando o Cine São José (O Pulguinha), no Bairro da Quintas, em Natal/RN., do jornalista Alex Medeiros, foi publicado em sua coluna Portfolio para o Jornal de Hoje do dia 04/01.

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