terça-feira, 26 de janeiro de 2010

CINEMA E MAGIA


*Falves Silva

“Depois das bruxas, somente a
arte possui o dom de enfeitiçar.”

A história do cinema começa com as sombras, talvez seja nossa herança mítica/mística, de procurar nas sombras o nosso outro eu. Assim, inevitavelmente, o homem estaria predisposto a criar a reprodução de sua imagem o mais próximo da perfeição, senão tão real quanto a ele mesmo, mas, pelo menos, uma perfeição virtual. Como a imagem do espelho onde nos vemos representados dentro dele, e de dentro, sabe que estamos do lado de fora. Como o espelho, o cinema também tem esse fascínio ilusório, que tanta força exerce sobre nós. Esse poder refletido da imagem foi retratado magistralmente pelo poeta Edgar Allan Poe em seu conto alegórico Willian Wilson, onde o poder demoníaco da imagem sobrepõe-se ao indivíduo: a magia do cinema estaria inserida na efemeridade do devaneio psicológico em massa, criando uma percepção enganosa, imagens analógicas do ser, ou do objeto em foco, fenomenologia da cópia (Walter Benjamin), um disfarce que torna menos dolorosa nossa tragicômica existência. Em se tratando de cinema é tudo mentira, sonho quimérico e passageiro. A invenção do cinema data de um pouco mais de um século (1985). No entanto, sua importância para o chamado mundo moderno ou pós-moderno, como querem alguns, superaria as expectativas de todas as artes, multiplicaram-se aos turbilhões, gerando milhões de expectadores no mundo ocidental.

Nosso primeiro deslumbramento com a Sétima Arte vem dos meados do século passado, mais precisamente no nostálgico e longínquo ano de 1952, na bucólica e provinciana Santa Rita. Foi lá, onde vi pela primeira vez as imagens reproduzidas numa tela, num cinema que funcionava nas proximidades de onde morava. Vi uma série de três filmes: o primeiro com o Gordo e o Magro (Stan-Laurel). O segundo com Hapolong Cassidy, o terceiro foi Romance dos Sete Mares com John Wayne (só descobriria a identidade dos atores e o título, muito tempo depois). A princípio, não compreendia a rapidez com que passavam aquelas primeiras imagens, só no terceiro filme comecei a identificar o mecanismo e o desenrolar da trama. Pudera, tinha apenas nove anos, foi paixão a primeira vista.

O quarto filme que assisti, já em Natal, O Pirata Sangrento (The Crimson Pirate), de R. Siodmak, com Burt Lancaster, Eva Bartok, USA, 1952, foi no Cine Rio Grande num domingo, com direito a sessões contínuas, nunca tinha visto um filme colorido. Lembro que entrei no cinema às 14 horas, e fiquei até a última sessão, saí extasiado com aquele colorido estampado nos olhos. Era noite e chovia torrencialmente, cheguei em casa todo molhado. Naquele tempo não tinha linha de ônibus em direção a Petrópolis; além do mais, morava no morro (hoje, rua Guanabara), minha mãe quase tinha um desmaio. Aquela foi a primeira noite que voltara tão tarde para casa, adormeci sonhando com as acrobacias mirabolantes do personagem do filme.

A paixão pela magia do cinema arrebatou-me com tamanha intensidade, que depois que vi O Pirata Sangrento, nunca mais deixei de ver três ou quatro filmes por semana ou mais. Junto com o cinema, veio também a paixão pelos quadrinhos; o maior colecionador de gibis do bairro era eu. Vivia nas portas dos cinemas comprando, vendendo e trocando revistas, e era desse comércio que eu conseguia o dinheiro das entradas do cinema. Nesse período, assistia todos os tipos de filmes; no São Luís, os seriados das sextas-feiras eram: Maravilhoso Mascarado, Falcão Negro, Fu-manchu, seguido dos filmes com Roy Rogers, Rex Allen, Tex Ritter, Gene Autry, Monte Hale, Rod Cameron, Rocky Lane, e tantos outros cowboys que povoavam as mentes férteis e ingênuas dos adolescentes daquele tempo. Esses mesmos seriados e filmes que passavam no São Luis eram repetidos no Cine Rex aos domingos pela manhã, porque as tardes eram reservadas para as matinês. No Rio Grande os filmes eram, A revolta dos Peles-Vermelhas (Batles Apache Pass). De George Sherman com Jeff Chandler – 1952, Ouro da Discórdia (Carson City), de Andre de Toth com Randolph Scott, 1952, Resistência Heróica (Only the Valient), de Gordon Douglas, com Gregory Peck, Barbara Payton – 1952. Salomé, de Willian Dieterle com Rita Hayworth, Charles Laughton – 1953. Nenhuma Mulher Vale tanto (The Iron Mistress) de Gordon Douglas, com Alan Ladd, Virginia Mayo – 1952. O Maior Espetáculo da Terra (The Greates Show on Earth), de Cecil B. de Mille – com Cornel Wilde, Betty Huton – 1952, Sansão e Dalila (Sanson and Dalilah), de Cecil B. de Mille, com Hedy Lammar – 1949 todos os filmes americanos série “B”. Cito esses filmes para relembrar o clima de aventuras que permeava nas salas de cinema dos anos 50. Se fosse enumerar a quantidade de fitas que vi entre 1953 e 1960, a lista se alongaria por páginas e mais páginas.

Limitava-me a conhecer os títulos e nomes dos atores, pelos quais me orientava, e aqui o lembro primeiro filme que me chamou a atenção para a ficha técnica, que foi Johnny Guitar de Nicholas Ray, com Jean Crawford, Sterling Hayden – 1954. A partir da ficha técnica, comecei a identificar direção, roteiro, fotografia, música, coadjuvantes, enfim, todo aquele letreiro que passa(va) antes de começar cada filme – já aqui, estamos no início dos anos 60.

Em 1961, data da fundação do Cine Clube Tirol, as primeiras orientações para a organização do cine clube foram dadas por padre Barbosa, que cedia as instalações do Salão Paroquial da Igreja Santa Terezinha para as discussões. A primeira reunião contou com a presença de Gilberto Stabili, Alderico Leandro, Paulo Campêlo, Roberto Segundo, Manoel Amâncio, Paulo Francinete (Palocha), eu e padre Barbosa, evidentemente, além de outros, que se desinteressariam pelo assunto; os que continuaram era cinéfilos apaixonados. Com o decorrer do tempo foram surgindo outros nomes, entre eles, Moacy Cirne, Bené Chaves e Paulo de Tarso – que já discutiam cinema no Marista onde eles estudavam. Posteriormente viriam outros, como, Hermano Paiva, Franklin Capistrano, Valdeci Lacerda, Juliano Siqueira, Manoel Barbosa, Ivanez França, Francisco Sobreira, além de outros que viriam depois. Cito estes por serem os integrantes da primeira geração do Cine Clube Tirol. As reuniões eram realizadas aos sábados à noite e continuavam nas mesas dos bares, geralmente na palhoça que funcionava ao lado do Rio Grande ou no Bar Glacial (Av. Rio Branco). Nessas alturas, havíamos criado a sessão do cinema de arte, cujo primeiro filme foi Gloria Feita de Sangue, de Stanley Kubrick – 1957. A sessão do cinema de arte exibiria alguns dos mais importantes filmes da história do cinema, a lembrar, M., O vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang – 1931, Alemanha; Contos da Luz Vaga, de Mizoguchi – 1953, Japão; Morangos Silvestres, de Ingmar Berman – 1957, Suécia; Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, 1964, USA; Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa – 1959, Japão; Blow-Up, de Michelangelo Antonioni – 1966, Inglaterra/Itália. Para lembrar estes poucos. Ao cinema de arte devemos a riqueza de nosso repertório cinematográfico.

Em 1965 o Cine Clube Tirol produziu três curtas em 8 mm. O primeiro, baseado num poema de Nei Leandro de Castro, Romance da Cidade do Natal, dirigido e fotografado por Moacy Cirne, tendo como assistente Valdeci Lacerda. O segundo com o tema do Forte dos reis Magos, dirigido por Gilberto Stabili, Franklin Capistrano e Francisco Sobreira. O terceiro, uma adaptação livre de um conto de Willian Soroyan, O Ousado Rapaz do Trapézio Suspenso, com direção minha e de Alderico Leandro. A experiência nos mostrou o quanto é difícil fazer cinema sem os recursos apropriados, contudo, os três curtas tinham algumas tomadas que mereceriam ser revistas, caso as cópias não tivessem se estragado com o tempo; graças às nossas incompetências não restou um fotograma sequer dessas experiências.

Continuei no quadro de associados do cine clube até 1967/68, quando o então presidente, Francisco Sobreira resolve me expulsar alegando falta de pagamento das mensalidades atrasadas (a bem da verdade, os motivos eram outros que não cabe aqui enumerar). Paguei a dívida com livros sobre cinema, O Écram Demoníaco, Iniciação ao Cinema, História do Cinema, O Gangster no Cinema, e vários outros que não me vem à memória, e nunca mais entrei na sala do cine clube. Em 1993 realizei um documentário em VHS sob o título “Falvismo” com 23 minutos brutos sem edição.

O cinema foi e continua sendo minha universidade, melhor dizendo, minha universidade sem paredes, como quer Marshal Macluhan. Com o cinema aprendi a ler: Poe, Dostoievisk, Kafka, Joyce, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Homero, a Bíblia. Com o cinema aprendi a ler os estímulos psíquicos subliminares da imagem, com o cinema aprendi a amar. Minha primeira esposa, pasmen, foi Marilyn Monroe, que me traiu na noite de núpcias com um certo jogador de beisebol, e em seguida com espectadores de todo mundo. Com o cinema aprendi a utopia do devaneio politeísta. Com o cinema aprendi também a ver as contradições dos er humano, o poder, a inveja, a miséria, o ciúme, a fome, e que Eros e Thanathos caminham sempre juntos.

Esta lista não segue necessariamente uma ordem alfabética ou de preferências, são somente filmes que marcaram meu aprendizado.

• Metrópolis – Fritz Lang – Alemanha 1926
• O Encouraçado Potenkim – Segei Eisenstein – URSS – 1927
• Napoleão – Abel Gancer – França – 1927
• M. o Vampiro de Dusseldorf – F. Lang – Alemanha – 1931
• Tempos Modernos – Charles Chaplin – EUA – 1936
• Cidadão Kane – Orson Welles – USA – 1941
• Os Visitantes da Noite – Marcel Carné – França – 1942
• Festin Diabólico ¬– Alfred Hitchcock – USA – 1948
• Tesouro de Sierra Madre – John Huston – USA – 1948
• Matar ou Morrer – Fred Zinneman – USA – 1952
• Os Brutos Também Amam – George Stevens – USA – 1952
• Um Condenado a Morte Escapou – Robert Bresson – França – 1956
• Rififi – Jules Dassin – França – 1954
• A Marca da Maldade – Orson Welles – USA – 1958
• Um Corpo que Cai – Alfred Hitchcock – USA – 1958
• Amantes – Luis Malle – França – 1958
• Hiroshima Meu Amor – Alains resnais – França – 1958
• Os Incompreendidos – François Truffaut – França – 1959
• Acossado – Jean-Luc Godard – França – 1959
• A Aventura – Michelangelo Antonioni – Itália – 1960
• O Processo – Orson Welles – Itália/Alemanha – 1962
• Psicose – A. Hitchcock – USA – 1960
• Rastros de Ódio – John Ford – USA – 1955
• Deus e o Diabo na Terra do Sol – Glauber Rocha – Brasil
• Dr. Fantástico – Stanley Kubrick – USA – 1964
• Z – Costa-Gavras – França – 1968
• Eclipse – Michelangelo Antonioni – Itália/França – 1962
• O Bandido Giuliano – Francesco Rosi – Itália – 1961
• Teorema – Pier Paolo Pasolini – Itália – 1968
• A Laranja Mecânica – Stanley Kubrick – Inglaterra – 1971
• O Baile – Etore Scola – Itália – 1986
• O Discreto Charme da Burguesia – Luiz Buñuel – França - 1972


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